O Coveiro Nilton
História e Vivências

"Eu não troco minha profissão de coveiro

por nenhuma outra profissão por aí não"

Um ambiente calmo que transmite paz e sossego. Silencioso. Ao longe, de barulho o que se ouve são buzinadas e acelerações de motos e carros que transitam pela movimentada Avenida Cesário Aragão, localizada ao lado esquerdo do Cemitério São Judas Tadeu, o conhecido Cemitério Velho. Na calçada frontal, poucos senhores sentados em bancos de pedras cinza com detalhes de linhas azul e verde (cores da bandeira de Santa Cruz do Capibaribe) conversam sobre os mais diversos assuntos. Política, futebol, cotidiano e volta e meia tem que falar de alguém que morreu e as circunstâncias. Seja um pai, um primo, um avô ou conhecido. É quase que obrigatório puxar assunto sobre morte e sepultamentos.

A fachada do campo da paz é um misto de modernidade e antiguidade. Ao mesmo tempo que é formada por mármore preto e marrom claro possui um portão maltratado e queimado do sol. Aparenta que outrora fora azul-marinho. Hoje exala uma cor acinzentada. É assim a primeira visão de quem chega nesse cemitério.

À sua frente está o Velório Municipal Antonina Maria de Jesus com a guardiã Neide, responsável também pela gestão do cemitério. É nesse espaço que podem ser velados os corpos à escolha dos familiares. Mas também é nesse espaço que repousa toda a documentação necessária para os sepultamentos. Nesse prédio que tem formato hexagonal que estão guardados os livros e registros de todas as sepulturas do cemitério velho. Alguns livros antigos cheirando a poeira e idade. Outros mais recentes que foram criados à medida que o cemitério cresceu desordenadamente. Não há um padrão de distanciamento entre sepulturas, formatos e organização.

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Detalhe de lápide - Foto: Victor Oliveira

Ao cruzar com os portões envelhecidos está em um novo ambiente. Está em um novo mundo. Mundo de paz, mundo do descanso. No corredor central, paralelepípedos montam um caminho que conduz para as laterais do cemitério ou para os fundos. Não é um corredor longo. Em determinado ponto se esbarra numa cruz imponente. Atrás dela a deteriorada e chamada Casa de Oração. Nesse casebre em formato de igreja ficam guardados alguns itens de trabalho como vassouras e os pertences dos coveiros. Já ferramentas mais caras como picaretas, enxadas, pás, carroças ficam guardadas no velório municipal. Lá é mais seguro. Na “véspera de ano” de 2022 todos os itens existentes anteriormente foram roubados do cemitério. No velório municipal ficam mais seguros. Aliás, o coveiro tem no seu histórico guardar os corpos nas covas. Corre um ditado na Capital das Confecções que “quando o coveiro prende – ou guarda – não tem quem solte.”

É nesse ambiente calmo e com características bem peculiares que trabalha, de segunda à sexta-feira, o coveiro Nilton João da Silva. Pega no serviço às sete da manhã até onze. Vai almoçar e descansar. Volta uma da tarde e segue na labuta até cinco da tarde. Ou na verdade o normal seria essa carga horária. “Os enterros muitas vezes atrasam. Às vezes a gente passa desse horário, mas tudo se combina com a chefa. Se for preciso passar da hora a gente passa. Depois quando um precisar ir resolver alguma coisa no Centro, precisar sair mais cedo, é liberado. Com conversa a gente se entende,” relatou o sepultador que vive da profissão há vinte anos subordinado a Secretaria de Serviços Públicos de Santa Cruz do Capibaribe. Todos esses anos foram dedicados a um serviço braçal e de pouca atenção. Mas de muita importância. “Só sabe o que é a morte os familiares que passam por isso. Eu mesmo já vi alguns familiares morrerem também.”

 

 

 

 

 

 

 

Exumação

 

Quando perguntado sobre exumação, o coveiro que tem em seu currículo passagem pelo Cemitério Pedro e Paulo Alves da Rocha, conhecido também como “cemitério novo”, relata com uma naturalidade de quem já participou várias vezes e tem domínio sobre o assunto.

Nilton relembra que recentemente precisou exumar um corpo. A Delegacia de Polícia Civil da cidade precisou obter algumas informações sobre os locais de perfuração à bala no cadáver. Foi feita a solicitação e junto com uma equipe de IML o coveiro abriu naturalmente a cova. Alguns estilhaços foram retirados do corpo para serem periciados.

Em situações como essas, Nilton não tem medo ou receio de algo. Após combinar com os solicitantes e tendo o ok da superiora do cemitério é hora de partir para reabrir a sepultura. Algumas vezes os corpos ainda estão intactos caso faça pouco tempo do enterro.

Segundo Nilton, todos os órgãos do corpo, com exceção dos ossos, levam em média três anos e meio para serem decompostos nas covas. Ele lamenta os tecidos e retalhos que são colocados no caixão para alinhar o corpo ou ornamentar demais. Passam-se os anos e esses materiais não se decompõem embaixo da terra.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nilton transmite seus conhecimentos

Sabendo da importância de transmitir seus conhecimentos e que sua sabedoria não deve ficar restrita a si mesmo, Nilton brilha os olhos quando fala de sua atuação também como professor/orientador de novos coveiros. Hoje seu companheiro todos os dias nos manejos diários do cemitério São Judas Tadeu é o também coveiro Carlinhos. Enquanto um está arrancando matos que crescem nos corredores e vielas no cemitério, o outro já enche a carroça de mão e leva os entulhos como terra, pedras, plantas, garrafas pets e de bebidas alcoólicas para os tambores de lixo em frente ao dormitório dos mortos do lado direito.

“Eu tenho ensinado a algumas pessoas depois que entrei. Quando eu cheguei me deram a mão, aprendi e tenho o maior prazer de ensinar a qualquer pessoa que seja preciso vim trabalhar com a gente,” contou.

Nilton narra que é nessa formação que o aprendiz-coveiro vai conhecer o dia a dia de seu trabalho e como desempenhar bem sua função seja fazendo jardinagem, cavando sepulturas, exumando corpos, limpando corredores e zelando de forma geral pelo bom funcionamento do cemitério.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Cemitério Mal-assombrado?

Quando se fala em coveiro, em muitos dá um frio na espinha involuntariamente até. Criou-se uma mitologia em torno da morte e tudo que está diretamente ligado a ela. Muito se pensa que cemitério é lugar mal-assombrado e que almas, espíritos, fantasmas não se desprendem desse lugar e ficam vagando eternamente por seus corredores. Há quem diga que não é por maldade, mas sim por uma condição existencial que não os libertou para esse plano e outros acham que é por maldade mesmo com os vivos. E existe ainda um grupo de céticos que negam totalmente que isso existe, tendo suas razões baseadas na ciência ou na fé.

Apesar de toda essa crença ou descrença, quem vive diariamente sujeito ou não a essas forças sobrenaturais é que pode afirmar se existe ou não. Nilton conta que só viu algo estranho, mal-assombrado, uma vez em todo esse tempo de trabalho. E mais: o seu companheiro de trabalho na época esteve na hora da conversa e pôde reforçar seu relato.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Era umas seis horas da noite. Já estava escuro. Guea que trabalhava comigo adiantou o passo e foi embora para a frente do cemitério. Eu fiquei geladinho igual um congelador. Era uma mulher de branco com um jeito de uma noiva, bem alta. Aquela coisa sabe quando você reconhece e some,” relembrou seriamente Nilton. Uma experiência que com certeza não tem como esquecer. Ele mostrou onde foi a sepultura que a mulher apareceu. Fica localizada no corredor principal, do lado esquerdo. E para desaparecer dali foi dado um sopro forte. Sopro este que rapidamente provocou o piscar de olhos de Nilton. Quando viu novamente, o ser não estava mais em sua frente.

“Não foi coisa desse mundo.

Foi coisa que já se foi."

 

Mergulhando no passado de suas lembranças, sobretudo no início de carreira, Nilton fez questão de destacar que para a profissão é preciso ter natureza, ou seja, ter aptidão e ser forte. Também tem que ter os nervos fortes. “Imagine você estar sepultando um corpo, a família chora, grita, se desespera ali do seu lado. Se não for forte você acaba chorando junto.” É um momento dolorido que se repete todos os dias e faz parte do ciclo da vida. Enquanto alguns familiares vêm conformados ou até mesmo sob o efeito de calmantes, há quem externe o luto desesperadamente. É principalmente nessas situações que o coveiro precisa ser forte.

Seu trabalho não é difícil só por ser braçal, de limpar corredores, de cavar covas que muitas vezes dão na pedra e é preciso quebrar com picaretas, mas sim por ter um preparo psicológico que vez ou outra ainda se abala. “Todos nós somos ser humanos. Embora a morte faça parte de nossa rotina, nem todo mundo está preparado. E quem vive nesse trabalho, por mais que já tenha enterrado corpos, não fica frio. Sabemos e entendemos como é difícil para as famílias. Eu sempre fui de uma natureza meia forte. É uma natureza de lutar com qualquer coisa. Eu sou uma pessoa forte. Você ver coisa difícil,” ressalta.

“Tenho orgulho do que sou pelo trabalho que exerço. Estou aí até quando Deus quiser.” É assim que ele se define apesar das dificuldades encontradas em todos esses anos. Toda a experiência dele legitimam um orgulho que de sua profissão que é bem sincero. É algo que não é da boca para fora. É mais interno. Vem do fundo coração e de sua consciência.

Tem quem diga que enterrar pessoas é o pior trabalho da face da terra. Nilton discorda totalmente. Para eles existem profissões mais perigosas. “Tem cantor bem pior que trabalhar aqui no cemitério. Por exemplo teve essa pandemia. Imagina aquelas pessoas que tiveram que estar no hospital todo dia dando remédio ou banho na pessoa que estava com a doença.” Nilton enfatizou que os profissionais da saúde que estavam na linha de frente no combate a doença estavam bem mais em perigo que ele. Para ele também, os profissionais  

“O serviço de cemitério é complicado, mas pegar o defunto com a doença para colocar naqueles sacos plásticos é bem pior, rapaz. Ver o povo que trabalha no IML [Instituto de Medicina Legal]. Você ver direto aqueles freezers grandes cheios de corpos é bem pior.”

Durante os picos de morte pela Covid-19 no Brasil, a realidade em Santa Cruz do Capibaribe não foi diferente. Nilton chegou a enterrar “cinco ou seis corpos por dia”. Os equipamentos de proteção individual (EPI) contra o Coronavírus como macacões, botas, máscaras, capacetes e luvas fizeram parte de sua rotina de trabalho muitas vezes. Após o uso eram queimados.

Ele relembra que presenciou situações muito triste onde os familiares não podiam velar os corpos e muito menos se aproximar do corpo na hora da descida da urna funerária na cova.

 

 

 

“A vida da gente vai ter um dia que vai parar.

E tem que ter alguém para enterrar nosso corpo.”

As mãos calejadas, o andar um pouco curvado para frente pela repetida posição de limpar mato ou cavar covas (sua coluna já começa a formar o “C”), as botas de borrachas resistentes ao calor santa-cruzense de trinta e dois graus, a camisa de proteção UV para amenizar os efeitos do Sol em seu corpo magro mas forte, a calça de tactel preta relativamente bem cuidada e o tilintar de dois molhos de chaves que estão coladas ao seu peito como um atleta ostenta uma medalha numa olimpíada: essa é a imponência de um coveiro que lida diariamente não com a morte em sim mas com as consequências e com os atores em volta dela, seja familiares, oficiais de cartórios, agentes de funerária, etc.

A simplicidade de quem fala sem muitas palavras bonitas, mas sinceras – regadas de uma sabedoria profunda que até Atenas invejaria – e de um ser humano, antes de ser um trabalhador, obediente ao seu ofício e o bem servir à população que recorre quase que diariamente aos seus serviços é o retrato de tantos coveiros espalhados pelo Brasil. Distantes de grandes repercussões e de grandes homenagens, porém seu trabalho, seu agir e seu empenho dando o descanso eterno aos que necessitam impactam significativamente na vida de milhares de pessoas.

 

 

 

 

Nilton lembra que sua atuação não é eterna e reconhece que o normal para todos é um dia falecer. Embora tenha para si que sua morte será de causa natural e não com nenhuma doença advinda do manejo com restos mortais ou trágica. Como mostra em suas conversas, mesmo tendo esse pensamento, aceita que a vontade de Deus é superior a dele.

“A vida da gente vai ter um dia que vai parar. No ciclo da vida sempre tem um fim. E tem que ter alguém para enterrar nosso corpo.” É um pensamento valioso do simples Nilton João da Silva: aquele que guarda o mundo dos mortos.

 

 

“Querendo ou não querendo, todos nós chegaremos a esse ponto. O que temos por certeza é a MORTE.”

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Nilton e Carlinhos no corredor central do cemitério - Foto: Victor Oliveira

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Limpeza após um sepultamento - Foto: Victor Oliveira

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Em 20 anos como coveiro, Nilton disse que nunca viu uma cova com 7 palmos

  Foto: Victor Oliveira

Topo de sepultura - Foto: Victor Oliveira

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Retrato pousado entre uma atividade e outra - Foto: Victor Oliveira

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O tamanho ideal de uma cova é o comprimento de uma pá em pé - Foto: Victor Oliveira

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A religiosidade é muito presentes nos cemitérios santa-cruzenses com santos e cruzes - Foto: Victor Oliveira