A existência nas malhas do mal em "A maçã no escuro", de Clarice Lispector

Abstract

Neste trabalho, partimos do pressuposto de que a literatura é um cruzamento de vozes em diálogo, no qual concepções e visões de mundo, dramas existenciais e mundos vividos se deixam entrever na trama textual. Nesse sentido, o tecido literário configura-se como lugar de encontro de diversos discursos, a exemplo dos pertencentes aos campos filosófico e teológico, constitutivos do âmbito do humano, que projetam múltiplas possibilidades de ser e estar no mundo e possibilitam, pela leitura, diversos sentidos. Percebemos no romance A maçã no escuro (1999), de Clarice Lispector a presença dissimulada de textos considerados “sagrados” no universo judaico-cristão (Livro de Gênesis), imbrincados por meio de discursos de natureza filosófico-teológica, promovendo reflexo e refração que suscitam ressignificações, que revelam produtivas relações interdiscursivas no seio literário. Desse modo, analisamos o interdiscursivo, a partir das relações tecidas entre literatura, filosofia e teologia na obra A maçã no escuro. Enfocamos, de forma específica, os percursos temáticos e/ou figurativos ligados ao tema do mal e da salvação, imbrincados no romance. A análise mostra o drama existencial do personagem principal, Martim, homem em processo de fuga por ter cometido um crime e que, ao longo da narrativa, procura redescobrir o sentido de sua existência. Nessa trajetória, ele é entendido como um “novo Adão”, posto que a análise se opera a partir de um diálogo interdiscursivo com o livro do Gênesis, ao mimetizar o conceito da dogmática cristã envolvendo “queda” e “salvação”. O trabalho tomou como aporte teórico as contribuições de Maingueneau (1997) e Bakhtin (2006), no que se refere às relações acerca do discurso e interdiscurso, de Ricoeur (1995), no que se refere à hermenêutica da obra literária e, em uma perspectiva teo-filosófica, as contribuições de Kierkegaard (1972;2002), acerca de temas existenciais como a culpa e a angústia.